segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Ode ao Medo

Em verdade temos medo.
Nascemos no escuro.
As existências são poucas; Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.
E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios vadeamos.
O Medo - Carlos Drumond de Andrade

Estamos com medo e esse estado é tão perigoso quanto estar ao lado de um animal selvagem e faminto. O medo é criador de barreiras, fronteiras, muralhas e escudos capazes de formarem sombras de nós mesmos. O medo diz: Não vá! Não siga! Não confie! Não fale! Não ouça! Ele é capaz de debochar de nossas caras medonhas: Enquanto tiveres comigo, não agirás sem meu consentimento! E por diversas vezes ele consegue nos convencer. Pois tudo o que está além do que pisamos é desconhecido, inesperado, obscuro e o conforto do que é certo é utilizado como argumento do Sr. Medo.
Um dia desses João Ferreira da Silva venceu o medo e pediu as contas. Não essas contas que chegam exageradamente em nossas portas para serem quitadas e assegurar nossa vivência na sociedade de casas, carros e crédito no mercado. Pelo contrário, João decidiu pedir as contas para no final das contas não ter conta nenhuma para pagar. Abandonou a família, a igreja, o trabalho e o Estado. João abandonou sua identidade, João desfigurou sua digitais, João conseguiu até mudar sua
cor. Não se sabe mais de João, pois ele não existe mais para nós (companheiros fiéis do medo). Se um dia ele caminhar por aí, não será notado, João pisou em solos desconhecidos, metamorfoseou-se, tem a cor de homens sem medo (cor essa que dá medo só de imaginar).
Assim continuamos seguindo ao lado do que nos boicota tanto, transformando-nos em seres tão vivos, mas não existentes. Seres carregados de passividade, pois o espírito da luta foi sutilmente engolido pelo medo. Acomodados e conformados com uma repetida ação coletiva, pois o medo de transgredir também é um companheiro. São ociosos mentais, as idéias são ditadas por vozes opressivas: Compre! Experimente! Torne-se! Ganhe! Isso é clichê, tão clichê quanto nosso medo de sair do quadrado. Contam que nossos ancestrais são os culpados pelo nosso medo do escuro, mas quem é culpado por esse medo de tudo? Nosso DNA? Nossa ancestralidade? Isso é um pensamento fascista, tentando deturpar a liberdade da evolução. Não que João tenha conquistado a liberdade plena, não que os livres-pensa
dores tenham resposta para tudo, mas eles como todos nasceram em ventres idênticos aos que os medonhos vieram. Pensar que são super homens, deuses e alienígenas é santificar a evolução e olhá-la como um estágio alcançado por poucos. E isso é apenas o medo de perceber que apenas um passo que dermos por conta própria é capaz de afastar aos poucos esse inimigo da livre escolha.
Nós filhos das cavernas, devemos seguir para o lado de fora, mas antes libertar-nos das grades existentes do lado de dentro. Ninguém é livre do mundo das coisas enquanto enxergar coisas como algo. As coisas não existem e parece que esse fator não importa muito para seus apreciadores. Isso é medo oculto da existência, uma privação do existir que nos bloqueia para o descobrimento, pois viver já é mais do que poderíamos pedir. Nunca seremos inventores, pois deixamos os santos e cientistas recriarem nossa vida: um opera com milagres pagos pela fé e outro com provas financiadas pelos moradores das cavernas. Pagamos para eles saírem da caverna por nós e ditarem os caminhos da saída. Mas onde estarão as passagens secretas? Os santos responderam através da boca do medo e continuamos pagando para poucos livrarem-se das grades e tornarem-se os escultores de nossos caminhos de acordo com suas descobertas e ganhos materiais. O medo indica poucos caminhos, poucas cores: ou se é azul ou se é vermelho! E o guardião da caverna elimina as cores não indicadas pelo novo desbravador. Mais uma ditadura é criada, uma cor prevalece a outra e nós adotamos os ideais de um novo senhor que jamais indicará a estrada certa para o paraíso. Pois ele bem sabe que o paraíso é apenas a promessa de uma caverna maior e mais medonha. E rezaremos para que as correntes sejam mais fortes e nos prendam para o desfrute dessa prometida benção.

 Crônica de minha autoria publicada no Palanque Marginal



4 comentários:

  1. "O medo é criador de barreiras,
    fronteiras, muralhas e escudos
    capazes de formarem sombras
    de nós mesmos."

    Bonito isso...
    E gosto muito do tema!

    Um beijo,
    doce de lira

    ResponderExcluir
  2. Lisa, este é o melhor texto que já li sobre "o medo". Sempre digo que o medo me dá medo.
    carinhos pra ti

    ResponderExcluir
  3. O medo é uma semente cujo fruto é uma prisão eterna

    ResponderExcluir
  4. "Eu tenho medo / do medo que as pessoas têm..." [Humberto Gessinger]

    ResponderExcluir

Registre sua metamorfose