domingo, 25 de julho de 2010

José Saramago - falsa democracia



verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros "comissários políticos" do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os certas conhecidas minorias eternamente descontentes..."  

 Trechos de :  Da justiça à democracia, passando pelos sinos,  José Saramago.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

O Lado B




Conheceis o francês
sabeis dividir,
multiplicar,
declinar com perfeição.
Pois, declinai!
Mas sabeis por acaso
cantar em dueto com os edifícios?
Entendeis por acaso
a linguagem dos bondes?

Minha Universidade - Maiakosvski


Caminho entre becos, descartei as ruas e as calçadas, já faz um ano que percebi o quanto somos vigiados nos trajetos oficiais. Nos becos tenho a sorte de encontrar aqueles que ainda não foram demarcados e numerados. Nos becos ninguém tem porta numerada – as pessoas moram nas janelas, nos jardins, nas praças, e nas varandas com cheiro de almoço e dejetos de cães. Nos becos vejo sorrisos, poesia itinerante, arte do desapego, música ambiente e muita paixão. Aqui conheci um homem que fazia milagres – curava insanidade com filosofia. Aqui conheci heróis e heroínas, gigantes, mutantes, seres titânicos que mesmo com as ferramentas de trabalho nas mãos se compadeceram com o falecimento de Saramago e sabem muito bem o significado de uma cegueira coletiva. Oh, quanta matéria para o jornal daria a história dos becos! Porém, a prensa da imprensa reza a cartilha do momento e no momento o beco não é a sensação. Melhor que nos deixem mesmo em paz, melhor que não nos industrializem, que não vendam nosso modo de ser e nos deixem sem nada, até sermos obrigados a adotar seus modos de vida de domingo – comendo, bebendo e com medo de correr "risco de vida".